Fica aqui o texto que a Catarina Domingues escreveu para a folha de sala da minha exposição "O que fazer com isto".
«Espera-se de mim que diga algumas palavras que ouvi no fundo do mar, onde tanta coisa é silenciada e tanta coisa acontece. Abri uma brecha nas obstruções e objecções da realidade e encontrei-me diante do espelho do mar. Tive de esperar um pouco até que ele se estilhaçasse e eu pudesse entrar no grande cristal do mundo interior.»
Paul Celan
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Ao longe a paisagem desmoralizada. A ruína dos valores estranhamente assumida na ruína de um colectivo. Lugares transformados em não lugares, a imobilidade, a passividade, os edifícios que repousam solitariamente. O gesto esquecido do homem. Os lugares adormecidos no tempo, a consciência dessa dormência colectiva, o nada à espera de acontecer.
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Penso o momento labiríntico da experiência humana em que aquele que procura se deixa encurralar, gera a partir de si os obstáculos ao seu percurso, esse embate consigo mesmo em que as silvas aparecem do exterior amarradas a um interior complexo, um emaranhado de silvas caindo levemente no corpo à espera de o ferir. O homem vai mais longe, ao lugar inalcançável, ao outro lado da luz, aquela obscuridade em que tudo o que é vida se revela por linguagem oculta. Ele vai atravessar o caminho, esperando não se desvincular inteiramente, ele vai a caminho.
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Couves encantadas no seu reinado absoluto de serem, enraizadas à vida. Nesse esplendoroso absoluto de apenas ser, viver e morrer, totalmente integradas na terra, erguidas para o tempo, acontecendo. Para além da imagem da couve, a sua força, a mesma que inspira cada ser, a respiração de existir em cada folha, em cada nervura, nas veias de viver.
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Aquele que procura, vai em que direcção? Nesse caminho, encontra um pequeno despontar, um sinal de vida, é discreta e tímida a sua presença, mas tão significativa, uma erva que nasce do acaso. Que alívio que o acaso, o absurdo, gere vida, uma respiração tranquila, poder encontrar numa estrada agreste a experiência da vida, ela insiste em ser, em despontar! Essa força desmedida da vida que insiste em ser! É um grito de existir! De súbito o esplendor de tudo quanto nos cerca, inaugurando os dias.
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Somos matéria informe numa busca desconcertante de assumir forma, continuamente transformados pelo exterior. A matéria é incerta, incerta no tempo, no espaço, no abismo da diluição. A terra é esse lugar de onde as couves se erguem e onde os pés do homem se afundam, tudo construído sobre o precário e instável, todo o ser tem pés de barro.
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O homem edificou cidades, definiu propriedades e defendeu-as e dominou-as. No entanto é na simplicidade da folha da couve que reside o espanto, na agressividade das silvas, no chão pantanoso, nas pequenas ervinhas que corajosamente existem nos solos. Aconteceu que existíssemos, tal qual ervas daninhas, espontaneamente sobrevivendo, falta agora o sentido, que para além de transportarmos o dom da vida, carregamos o pensamento, o uso da razão.
Catarina Domingues, Abril de 2012
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